Autora: Ana Lúcia Palma Gonçalves – Mestre em Teatro pela UNIRIO
Resumo: Este artigo apresenta um panorama da trajetória do corpo excluído ao corpo incluído e deste corpo incluído à sua possibilidade de expressão artística.
Palavras-chave: Arte Inclusiva. Sociedade. Educação.
Cada época percebe o corpo do ser humano de uma maneira específica, obedecendo a leis e valores próprios e mutáveis. Quando falamos do corpo com algum tipo de deficiência, encontramos um histórico de atitudes e valores que oscila entre a mitificação e a destruição.
O pesquisador Otto Marques da Silva, em seu brilhante e tão necessário levantamento sobre a condição das pessoas com deficiência, sinaliza que
os grupos humanos de uma forma ou de outra tiveram que parar e analisar o desafio que significavam seus membros mais fracos e menos úteis (…) Na abalizada opinião de antropólogos e mesmo de historiadores de Medicina, pode-se observar basicamente dois tipos de atitudes para com as pessoas doentes, idosas ou portadoras de deficiências: uma atitude de aceitação, tolerância, apoio e assimilação e uma outra, de eliminação, menosprezo ou destruição (SILVA, 1987:21).
Apesar da dificuldade de se encontrar registros que comprovem estes procedimentos ao longo da História, alguns importantes trabalhos são bons guias, como no caso de Ramiro, ao dizer que
Na Antiguidade, quando o homem precisava usar a força física para dominar a natureza, com a finalidade de garantir sua sobrevivência, não havia lugar para os deficientes, pois eram incapazes de competir com os bens dotados (…). Na Grécia, onde a cegueira era tida como punição dos deuses, os cegos eram entregues à própria sorte enquanto na China eram preparados para serem profetas e na Índia eram os responsáveis pela transmissão oral dos conhecimentos da cultura de seu povo às gerações, sendo respeitados como adivinhos. (…) nos séculos XVII e XVIII, os recém-nascidos com deficiências ou os indivíduos não desejados por um padrão de normalidade eram eliminados. (RAMIRO, 1997: 22, 23).
Nos séculos XIX e XX, portanto muito recentemente, os corpos deficientes eram mantidos escondidos dentro das casas, em um quarto sombrio para esconder a “vergonha familiar”. Corpos sem direitos e sem respeito, sem vontades e atitudes. Deflagrando um corpo social mutilado pela cegueira de não enxergar a beleza da diferença, um corpo social mutilado pela surdez de não ouvir as necessidades diversas, um corpo social mutilado pela imobilidade de caminhar lado a lado com a abrangência humana.
O marco de mudança deste paradigma social foi, curiosamente, a Segunda Guerra Mundial, quando uma quantidade assustadora de combatentes teve braços e pernas amputados por bombardeios e os governos se viram obrigados a lidar com a situação de forma mais contundente. Assim, se inicia o movimento inclusivo visando reconhecer os direitos das pessoas com deficiência.
A ONU entendeu a necessidade de um plano de ação mundial tal a gravidade, a complexidade e o número de pessoas com deficiência e trabalhou com afinco, promovendo seminários que resultaram, em 1975, na Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes e, em 1981, no Ano Internacional das Pessoas Deficientes que deram origem à Declaração de Salamanca e à Carta ao Terceiro Milênio .
Para que a discussão fosse abrangente, governos, organizações não governamentais e grupos de voluntários se organizam pelo mundo a fim de planejar e executar ações para que as metas traçadas pela ONU sejam atingidas. Campanhas de esclarecimento público passaram a figurar nos meios de comunicação, leis foram criadas para assegurar direito ao trabalho, à educação e à participação social como um todo. Medidas preventivas de cuidado à saúde, de habilitação e reabilitação têm se alastrado embora ainda de forma vagarosa.
Em São Paulo, a partir das premissas oferecidas pela ONU, uma comissão presidida por Dorina Nowill , apronta e aprova um relatório que trata de objetivos como
Educação, Prevenção, Reabilitação Global, Trabalho, Conscientização, Acesso e Eliminação de Barreiras, Materiais e Equipamentos e Legislação (SILVA, 1987: 338)
Discussões e ações vêm acontecendo em todo território brasileiro para que o segmento social e as pessoas com algum tipo de deficiência se aproximem e vivam, de forma consciente, a complexidade e a riqueza da diversidade humana. Quando a mídia se encarrega de ser porta-voz dos excluídos, ainda que de forma equivocada em alguns pontos, como no caso da telenovela América de Glória Perez, levada ao ar no ano de 2006, pela Rede Globo de Televisão, os cidadãos se desarmam e se abrem para pensar em questões que não fazem parte de suas conversas e preocupações habituais.
Entretanto, nem tudo caminha positivamente neste quadro inclusivo: verifica-se a falta de preparo técnico de muitas instituições e entidades que trabalham em prol da pessoa com deficiência. Sem contar que muitos políticos se apropriam indevidamente da causa, apenas para benefícios próprios.
Também na contrapartida da estrutura eficiente, a bem da verdade, muitas pessoas com comprometimento físico, mental e sensorial não estão devidamente capacitadas para o mercado de trabalho. Isto porque sua formação é deficitária desde a infância (lamentavelmente assim tem sido no Brasil para as crianças com e sem deficiência). As escolas especializadas são minorias e, por este motivo, incapazes de dar conta do contingente de cidadão com deficiência. Além disso, sua estrutura é pouco maleável devido ao engessamento burocrático a que estão submetidas e, muitas vezes, parecem servir apenas para proteger uma reserva de mercado e favorecer posições de interesse político.
Muitas das escolas “inclusivas”, por sua vez, recebem os alunos com má vontade ou não recebem simplesmente, violando o direito da criança com deficiência. Mas o problema mais grave é que, ao receber um aluno com necessidades especiais de educação, estas escolas, em sua maioria, não dispõem de recursos humanos e nem de recursos materiais para que a educação inclusiva de fato se estabeleça. Embora no plano de ação mundial esteja previsto o treinamento pessoal profissional e técnico para a garantia do programa inclusivo, a verdade é que a escola de formação de professores ainda não tem mecanismos apropriados para a capacitação deste futuro profissional da educação que poderá deparar-se com um grupo altamente heterogêneo e excessivamente diverso em suas necessidades elementares de aprendizagem.
É evidente que conhecer as necessidades e dificuldades destes corpos e implantar ações que respeitem estas características leva tempo e requer uma soma de valores monetários expressivos na economia mundial. Se pensarmos apenas em termos de acessibilidade urbanística e na criação de um desenho universal que atenda às demandas dos corpos de cadeirantes, obesos, cegos e surdos, veremos que esta iniciativa requer uma transformação absoluta na paisagem das cidades em todo o mundo, pois como a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABTN) define, acessibilidade é
A possibilidade e condição de alcance, percepção e entendimento para utilização com segurança e autonomia de edificações, espaço, mobiliário, equipamento urbano e elementos.
Preconceitos de ambos os lados, medos de ambos os lados, indiferenças de ambos os lados retardam a convivência. Muita compreensão e tolerância precisarão ser desenvolvidas e empregadas para um resultado respeitoso e digno.
Entretanto, é preciso ressaltar inúmeras vezes que por mais que nossa época se apresente como turbulenta e violenta e por mais que estejamos na infância deste processo, a inclusão caracteriza um verdadeiro avanço evolutivo de nossa espécie. Nunca antes na história foram criados projetos que englobassem a diversidade humana e valorizassem a riqueza que a multiplicidade de percepções permite. Somos pioneiros e disto podemos nos orgulhar.
É preciso ressaltar também que apesar de toda a complexidade desta transformação, a sociedade contemporânea admite a existência destes corpos e, mesmo precariamente, abre uma discussão mais ampla através dos movimentos políticos, sociais e culturais idealizados e realizados pelas próprias pessoas com deficiências. Busca-se criar um corpo social mais vasto e unificado, que aprende com as diferenças e dela se beneficia para a melhor compreensão da condição humana. Assim, podemos ressignificar o conteúdo das ausências sensoriais e físicas e, a partir delas, vislumbrar novas possibilidades para a construção da vida na sociedade planetária.
Nestes movimentos de inclusão de e para pessoas com deficiência em vários setores da vida humana, a diversidade passa a ser tratada não apenas a partir das ineficiências, mas a partir de possibilidades outras advindas de uma maneira diferente de ser e estar no mundo.
A arte não poderia ficar de fora deste processo. A arte inclusiva é uma realidade, mas, de tão jovem que é, carece de metodologias para a formação destes novos artistas. Pensar em uma produção artística e cultural realizada por indivíduos com deficiência pressupõe considerar a indagação de Santos : “Seria possível e permitido imaginar a existência de uma relação da deficiência com a produção estética?” (FUNARTE, 2003: 9).
A necessidade de pesquisar técnicas apropriadas para a expressão dos corpos excluídos do padrão da normalidade parece ser a resposta mais apropriada para esta pergunta. E este caminho inaugural vem sendo percorrido por inúmeros grupos nas diversas artes e em diferentes países. Artistas com deficiência criam e expõem suas criações. Para as platéias com deficiência também são criados recursos inclusivos.
Em observância a esta nova maneira de atuação surgem, nos vários segmentos da arte, expressões singulares de pessoas que discutem as questões relativas à deficiência. Mesmo dentro de um contexto social ainda restrito, o público sem deficiência começa a ter despertado seu interesse por estes acontecimentos artísticos porque, segundo Loureiro
Uma arte sem barreiras não pode existir como apenas sonho, refém de utopias pessoais. Precisa concretizar-se no chão das relações sociais, no que a quebra da exclusão é um gigantesco passo. A produção artística, ainda que pessoal, é parte do processo social e, por isso, a inclusão artística é intercorrente com a inclusão social. (LOUREIRO. 2003: 14)
A existência de um corpo deficiente artístico dentro da nossa sociedade inclusiva contemporânea pressupõe uma busca de novas maneiras de expressar a consciência do homem moderno. É um desafio pesquisar técnicas mais condizentes e adequadas às limitações físicas e sensoriais. A mudança de perspectiva a que é forçado o artista que trabalha com a arte inclusiva, enriquece o saber artístico e sugere novas metodologias e práticas. Função desafiadora, perigosa e, ao mesmo tempo, estimulante, pois, forçado a encontrar soluções diferentes para que corpos diferentes se expressem e se comuniquem o artista com deficiência ou aquele que trabalha com o artista com deficiência abre outras portas de sua sensibilidade e percepção para dar conta da tarefa. Em última instância, o que a arte permite e propicia é um alargamento do homem, um revelar-se do homem: ressignificação e releitura – próprias da vida.
Entretanto, sem a capacitação adequada e sistemática, sem um estudo minimamente teórico, acredito ser muito difícil desenvolver uma estética inclusiva. Trabalho e pesquisa formam a base para a construção de produtos culturais que possam ser oferecidos para as casas de cultura e espetáculo oficiais e para o público em geral. A pessoa com deficiência precisa ser devidamente qualificada para ocupar um papel artístico na sociedade. Formação que vise o aprimoramento intelectual, físico e emocional para a produção de obras com qualidade estética. Fato que não é diferente para aqueles que não possuem deficiências físicas ou sensoriais.
Algumas iniciativas se consolidam em função da pesquisa de métodos e sua aplicação, contudo muitas ainda esperam pelo suporte acadêmico para sua ampla legitimização.
A pergunta de Brasil é o ponto de partida que deve servir de bússola para os produtores de arte inclusiva. A elaboração de processos artísticos exige comprometimento técnico e estético. A sensibilidade artística precisa ser enriquecida pelo fazer e pelo conhecer. Ao artista com deficiência devem ser oferecidos instrumentos para moldar seu talento tanto de forma prática como teórica.
Acredito que o núcleo do problema da arte inclusiva seja a ausência de diálogo entre os Ministérios da Educação e da Cultura. Não podemos falar da cultura da diversidade sem compreender que a produção artística de qualidade está atrelada ao acesso à educação pelo artista com deficiência. A produção cultural inclusiva não poderá ir muito longe ou gerar obras efetivamente aptas ao consumo se a educação não for a base estrutural para tal ação. Discutir e consumir a arte inclusiva é refletir e aplicar a educação inclusiva. Reconhecer o artista com deficiência é uma conseqüência de sua absorção nas escolas de arte e da efetivação de sua formação respeitando o Decreto 5296/04 que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade: as escolas de arte devem ser estruturadas e os professores capacitados para absorver este público em condição de vulnerabilidade.
Mas acredito que parte desta responsabilidade está nas mãos dos artistas com deficiência que devem tomar para si a função de educar a população sobre suas habilidades e necessidades. Nenhum de nós teve o privilégio de ser educado sob o paradigma da inclusão e diversidade humana. Estamos em fase de expansão conceitual e um cidadão com deficiência é a pessoa mais competente para falar de suas questões e das condições em que se constituiu. Esta sociedade plural é composta por individualidades que precisam assumir responsabilidades cada vez mais amplas e comprometidas.
Despido de reconhecimento social o artista com deficiência fica restrito às mostras inclusivas, o que limita em muito a fruição de sua produção. Entretanto, é preciso levar em conta que isto não é fácil mesmo para aqueles que não possuem comprometimentos físicos ou sensoriais e que atuam há muito tempo no quadro cultural brasileiro. Sensibilizar o público, de forma geral, para consumir produtos artísticos não é uma das tarefas mais simples. Carecemos de amadurecimento cultural para que a população se torne consumidora da arte, carecemos de amadurecimento social não-discriminatório para que o artista com deficiência atinja o status de artista, sem complemento
Não posso deixar de pensar que a Arte é a mais poderosa e prazerosa expressão daquilo que é mais caro ao ser humano: sua própria humanidade. No simbólico da expressão artística, o homem pode se ver mais profundamente porque se vê em outros. E é sempre em relação ao outro que a Arte nos coloca. Nesta confluência de entidades diversas e singulares o sangue vibra mais intensamente, tornando vivas as emoções, sensações e percepções que dão sentido à nossa existência. Ansiamos que a Arte possa cumprir aqui, mais uma vez, seu papel de integração humana na relação entre artistas e público com algum tipo de deficiência ou não.
O desejo e a necessidade de expressar-se artisticamente pertencem à capacidade imaginativa do indivíduo e ela está presente também, indiscutivelmente, naquele privado de algum membro ou sentido. A necessidade de dialogar com o outro, por meio da expressão artística, não escolhe apenas os cidadãos ditos normais para se manifestar, ela pode brotar em qualquer lugar, em qualquer condição sócio-cultural, em qualquer corpo. E dar forma a este impulso é um direito social, educacional e artístico.
A arte é um lugar que favorece a tomada de consciência. A estética artística pode ser o reflexo da ética política e social, em concordância com Paes Loureiro.
Referências Bibliográficas:
LOUREIRO, João de Jesus Paes. A estética de uma ética sem barreiras. In: Educação, Arte, Inclusão – Cadernos de Textos 3. Rio de Janeiro: FUNARTE: 2003.
RAMIRO, Vanda Cianga. O Brincar da Criança Cega: um estudo psicológico sobre a atividade lúdica de crianças deficientes. Dissertação de Mestrado, Universidade São Marcos, 1997.
SANTOS, Albertina Brasil. Introdução. In: Educação, Arte, Inclusão – Cadernos de Textos 3. Rio de Janeiro: FUNARTE: 2003.
SILVA, Otto Marques. A Epopéia Ignorada: A Pessoa Deficiente na História do Mundo de Ontem e de Hoje. São Paulo: CEDAS – Centro São Camilo de Desenvolvimento em Administração da Saúde, 1987.
Fonte : Ciama Cultura
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